Caro Miguel Araújo,
Lamento imenso se a sua mulher o empalitou com o marido de uma amiga qualquer. Se foi esse o caso, compreendo que certamente deve ser uma situação desagradável.
Ainda assim, não me parece que esse putativo dissabor justifique a criação e divulgação de uma
canção - que inexplicavelmente se tornou um hit nacional - em que rotula as mulheres como querendo ou cobiçando os maridos das outras, em geral, e das amigas em particular.
Peço-lhe, portanto, que, não me conhecendo (a mim e a muitas mulheres deste País, suponho), não me julgue pela mesma bitola que utiliza para julgar as mulheres com quem possa eventualmente privar.
Agradecida.
segunda-feira, 28 de maio de 2012
quinta-feira, 17 de maio de 2012
I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora
.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
A Criança que Fui Chora na Estrada, Fernando Pessoa (1933)
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora
.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
A Criança que Fui Chora na Estrada, Fernando Pessoa (1933)
segunda-feira, 14 de maio de 2012
...
Quando escrevi as linhas abaixo, não podia imaginar que, poucas dezenas de horas depois, estaria a sofrer mais uma dolorosa e irreparável perda.
Antes, faltavam-me as palavras. Agora falta-me o ar.
segunda-feira, 7 de maio de 2012
...
Podia escrever sobre a minha viagem a Itália e o buraco que me deixou no peito. Podia escrever sobre a aflitiva e injusta morte de Miguel Portas, levado pela doença filha da puta do costume. Podia ainda falar sobre o 1º de Maio e o Pingo Doce, sobre as eleições em França e na Grécia, sobre mais um Dia da Mãe triste e vazio, sobre o egoísmo e a falta de respeito pelo outro que me cansam e desiludem, ou sobre a merda do tempo e a Primavera que nunca mais chega. Podia escrever sobre isto tudo e sobre mais ainda, mas não escrevo.
Não escrevo porque, ultimamente, me faltam as palavras e o chão. Porque cada dia tem sido uma luta para me manter à tona, para não me deixar vencer pela tristeza, pela desmotivação, pela falta de esperança em dias melhores.
Estou assim, cinzenta como o céu de Lisboa. Até breve.
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